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O que o Vale do Dendê tem?

Batizado em referência ao Vale do Silício, na Califórnia, grupo baiano atua para estimular a formação de polo de inovação e criatividade com feições locais

Por Dagmar Serpa
Atualizado em 1 Maio 2018, 22h28 - Publicado em 1 Maio 2018, 22h27

O nome não se refere a uma localização geográfica, muito menos a um negócio de gastronomia, como pode fazer crer a presença de um dos principais ingredientes da comida baiana. Para explicar o projeto Vale do Dendê, é preciso citar antes o Vale do Silício, a região americana com concentração de empresas de alta tecnologia, que reúne gigantes da área, como Apple, Google e Facebook. Foi inspirado no polo situado na Califórnia que o publicitário soteropolitano Paulo Rogério Nunes, 37 anos, teve um insight enquanto conversava com o cantor e compositor Gilberto Gil, durante a gravação de uma cena de documentário. Pensou ali que, se os Estados Unidos tinham o vale inovador deles, a Bahia também poderia criar o dela, só que respeitando o jeito e as vocações locais. Isso foi em 2013. Agora a ideia está em pleno funcionamento.

Desde o começo de abril, 30 startups selecionadas entre 107 inscritos estão imersas em um processo de aceleração. Haverá novo funil e, no fim de maio, devem ser anunciadas as dez que passarão para a próxima etapa e receberão uma consultoria customizada e mais longa. A segunda fase se estenderá até setembro (com a possibilidade de durar mais, conforme a demanda). “Mas, como somos uma organização com um pé na competitividade e outro na inclusão, não vamos excluir ninguém. Os outros 20 permanecerão no nosso radar, participando de eventos, fazendo networking e com acesso facilitado a cursos.”

Também em maio, a organização – que Nunes fundou, em novembro de 2016, com três parceiros e chama de holding social – inaugura uma escola de inovação. Funcionará inicialmente em uma loja temporária no Shopping da Bahia, em frente à rodoviária de Salvador. “Cursos, palestras e workshops serão cobrados, mas com valores baixos, idealmente subsidiados, pois a proposta é popularizar os conceitos mais modernos de inovação”, explica. Ali também será oferecido espaço de coworking e de exposição e divulgação de produtos e serviços. Na primeira seleção, houve um interesse especial em dar oportunidade a empreendedores que não costumam ter muitas. “Procuramos inverter um pouco a lógica do universo das startups e suas grandes incubadoras e aceleradoras, que quase não tem mulheres, negros e jovens das periferias”, diz Nunes. Ele ressalta, porém, que o Vale do Dendê “é para a cidade toda”. Significa que não foram colocadas barreiras de acesso para moradores de bairros de classe média, por exemplo.

O recorte tem tudo a ver com a própria história de Nunes. Nascido em Salvador, no Alto da Terezinha, bairro do chamado Subúrbio Ferroviário, o publicitário diz que foi o primeiro da família a cursar uma universidade – e o segundo do seu bairro, embora essa informação ele não tenha como provar. “Sei porque lá é pequeno e todo mundo se conhece.” Com espírito empreendedor, que diz ser inato, é cofundador do Instituto Mídia Étnica, uma iniciativa ainda da época da faculdade, assim como do Portal Correio Nagô. Estudou novas mídias na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, com bolsa do programa internacional Fulbright. No ano passado, estava entre os 11 líderes escolhidos para um encontro privado, em São Paulo, com o ex-presidente americano Barack Obama. São dois grandes feitos para quem aprendeu inglês sozinho, com a internet, conforme conta.

Dos 30 projetos inicialmente selecionados, com critérios de inovação, impacto social e diversidade, em torno de 80% são tocados por negros e vários têm como foco prioritário esse público. Não por acaso, encontram-se na lista nomes como Afreeka, Afrobox, Afrotours e Afrodengo. Esse último alia um aplicativo de relacionamento a uma rede de eventos e uma marca de roupas e acessórios. Vende-se como “a primeira startup brasileira voltada para a afetividade negra”. “Há uma demanda forte nessa área. Existem dados, até acadêmicos, mostrando que a solidão das mulheres negras é maior”, diz Nunes.

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O portfólio inclui games singulares, sistemas inteligentes de segurança e de gestão logística, plataforma que conecta consumidores e pequenos produtores de móveis sustentáveis. Mas nem tudo é tecnologia digital no Vale do Dendê. Ao contrário: só cerca de 20%, segundo Nunes, atuam no segmento. “O conceito de startup é de empresa inovadora, que tem poder de escala e está no início, e isso todas as escolhidas são”, afirma ele, acrescentando que a inovação não vem só do mundo digital.

Se o conjunto (conheça quatro histórias a seguir) resultará, no futuro, em um mais concreto Vale do Dendê, ele diz que não há como prever. Argumenta que, nos primórdios do Vale do Silício, ninguém também imaginava que daria no que deu. “Nossa tese é que se investir nas periferias para estimular o desenvolvimento de soluções criativas, o que sair dali pode ser replicado em uma escala muito maior do que algo criado na Berrini (referência à região paulistana da Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, que virou polo de negócios) ou no Leblon (famoso bairro carioca das classes média e alta)”, afirma. Para Nunes, uma tecnologia inovadora – de mobilidade, saneamento básico ou até de beleza – concebida em um área popular de Salvador pode muito bem ser útil para a Colômbia ou para países africanos – e, assim, fartamente reproduzida. No Vale do Silício, ele completa, todos mantêm olhos abertos para o que chamam de “next billion consumers”. “E o próximo bilhão de consumidores virá dos países emergentes, especialmente da África”, afirma. Não parece mesmo improvável que essa leva se conecte com as coisas da Bahia e seu Vale do Dendê.

Diversidade nos jogos

Games com abordagem positiva e maior representatividade de negros, mulheres e comunidade LGBTT. É assim que o grafiteiro, produtor cultural e desenvolvedor de mídias José Hernani Santos, 37 anos, define a Olukemi, empresa em processo de incubação no Vale do Dendê, que também criará aplicativos. Para a empreitada, esse soteropolitano do bairro Engomadeira, aluno do curso de Tecnologia de Jogos Digitais da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), uniu-se a cinco jovens, dos 18 aos 23 anos. Avisa que o primeiro produto já está a caminho. “É um game em que um homem negro e gay enfrenta dificuldades para chegar em casa depois de sair da faculdade tarde da noite”, revela. E logo acrescenta: “Não é um personagem estereotipado”. Serão três fases. Na primeira, estará diante do desafio do transporte público. Na segunda, enfrentará a homofobia e, por fim, a violência nas comunidades. No cenário, poderão ser vistos locações baianas. Porém, nada de cartões postais de Salvador. “Quem é da cidade reconhecerá.” Apesar da história tão cheia de especificidades, Santos diz que o lançamento não se dirigirá a um público específico. “Qualquer pessoa poderá jogar.”

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Mobilidade para a beleza

É como um make truck. Ou, talvez, um beauty truck. Um veículo que pode levar beleza a eventos, empresas, comunidades e aonde mais quiser é a ideia original do Studio Móvel, a startup que deu a Maili Santos, 33 anos, passaporte para o Vale do Dendê. Também pode ser um espaço para marcas lançarem produtos e para outros profissionais que não têm salão usarem em certos horários. “A ideia nasceu do meu interesse por mobilidade, devido à minha deficiência”, conta Maili, que, portadora de uma paraplegia não traumática, é cadeirante. “Nunca aceitei as limitações impostas.” Casada, com dois filhos, ela conta que envolveu a família toda no sonho e que o projeto já mudou bastante desde o início do processo de aceleração. Por enquanto, pretende transportar serviços de unha e de cabelo, mas, principalmente, maquiagem, com foco maior no público afrodescendente. “Ouvia muita mulher reclamando que, maquiada, ficava cinza ou rosada, e ela queria apenas ser negra. Então, fui atrás de me especializar.” Com isso, conseguiu criar a própria tecnologia para acertar no tom. “Sei bem o que é ser motivo de chacota”, justifica. “Quero é encher a vida dos outros de cor e alegria.”

Estudantes sem fronteiras

Pesquisa mostra que, no ano passado, o volume de brasileiros estudando no exterior atingiu a casa dos 302 mil. “Mais de 50% escolheram Canadá, Estados Unidos e Reino Unido”, acrescenta Suanne Bispo, 32 anos. Ela entrou no Vale do Dendê disposta a inserir, com sua agência, Go Abroad, mais e mais jovens negros de periferia nesse universo. “A gente sabe a importância de falar outras línguas e de ter vivência internacional para o mercado profissional”, enfatiza. Suanne alcançará sua meta de popularizar os intercâmbios diversificando a oferta de destinos e reduzindo drasticamente custos. Por que não fazer inglês em Trinidad e Tobago ou francês no Senegal? Para o principal público-alvo, escolher um lugar como o país caribenho ou o africano ajuda a “criar identidade e desmistificar essa possibilidade de desenvolvimento”. Com uma seleção de instituições gabaritadas, ela ressalta que as viagens com pegada étnica não são exclusivas para negros. Formada em estatística, Suanne nasceu em uma família que, segundo ela, teve “bom acesso à educação, mas não ascensão profissional compatível”. Batalhou a primeira experiência fora do Brasil, ainda na faculdade, arranjando emprego em um fast-food da Disney durante as férias. Mais tarde, rodou 11 países atuando como garçonete em cruzeiros marítimos.

Segurança e logística inteligentes

Tecnologia digital em estado puro? O Vale do Dendê também tem. Henrique Amorim, 24 anos, começou, com três sócios, a startup Interakt em 2016, ao participar de um desafio de empreendedorismo promovido por uma montadora. Graças à experiência, foi desenvolvido um alarme inteligente, que comunica ao dono, por intermédio do celular, se o veículo estacionado sofreu alguma batida ou um arrombamento. Tem até botão de pânico para enviar notificação em situações de risco. Agora o grupo está debruçado na criação de uma plataforma de gestão logística para empresas, começando pela área de transporte. “Vamos permitir, por exemplo, um controle com monitoramento em tempo real de entregas, o que resulta em redução de custos”, conta. Poderá, ainda, possibilitar um uso mais consciente de frotas corporativas. Se a empresa destina um carro para um diretor que passará o dia todo em reuniões internas, não faz sentido pagar um táxi para que outro compareça a um compromisso externo. “A proposta é melhorar a mobilidade de todos e, em consequência, a qualidade de vida”, diz Amorim. Depois, a estratégia é atacar outros processos logísticos. “Sempre vivi neste ecossistema de empreendedorismo digital, que ainda é muito incipiente em Salvador”, afirma o engenheiro mecânico que, recém-formado pela Universidade Federal da Bahia, fez intercâmbio na Universidade de Sheffield, na Inglaterra, com o programa Ciência sem Fronteiras, e já ganhou prêmio por sua criatividade.

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