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Álcool e gestação: nada a ver! Vamos mudar o final desta novela!

O cérebro do feto é o órgão mais suscetível aos efeitos da exposição pré-natal ao álcool

Por Salmo Raskin
Atualizado em 15 out 2018, 16h31 - Publicado em 15 out 2018, 14h17

No capítulo da última quinta-feira 11 de outubro, na véspera do “Dia das Crianças”, a novela “Segundo Sol”, da Rede Globo, exibiu uma cena em que a personagem “Rosa” (Letícia Colin), grávida, para em um boteco durante a noite e começar a beber até desmaiar.

Na novela, o “porre” parece não ter tido nenhuma consequência para a saúde da gestante e do feto. Mas na vida real a situação é bem mais complicada e pode ter consequências irreversíveis. Estamos falando da Síndrome Alcoólica Fetal (SAF), pouco conhecida dos brasileiros, mas uma das principais causas de anomalias fetais, com repercussões para a vida toda, principalmente para quem sofreu os efeitos do “porre” passivamente, ou seja, o feto, mas também para toda a família e a sociedade.

A ingestão de álcool na gravidez coloca o feto e o futuro indivíduo em alto risco!

O álcool é historicamente reconhecido como um potente agente causador de ruptura do desenvolvimento normal do embrião e do feto. Ele compromete o fluxo sanguíneo para a placenta, além de circular livremente por todos os compartimentos líquidos do corpo, fazendo com que na gestação o líquido amniótico permaneça impregnado de álcool, e assim, a concentração de álcool é a mesma na gestante e no feto.

Para o feto ainda pior, pois este possui metabolismo e mecanismos de desintoxicação mais lentos que os de um indivíduo adulto. O cérebro do feto é o órgão mais suscetível aos efeitos da exposição pré-natal ao álcool, uma vez que todos os trimestres da gestação são críticos para o seu desenvolvimento. Em 1973, a SAF foi definida do ponto de vista médico como uma condição irreversível caracterizada por anomalias craniofaciais típicas, deficiência de crescimento intra e extrauterino, disfunções do sistema nervoso central (incluindo anormalidades neurológicas, alterações comportamentais, atraso no desenvolvimento neuropsicomotor e deficiência intelectual) além de várias malformações associadas, principalmente cardíacas, oculares, renais e de coluna vertebral.

Como evitar que seu filho tenha SAF?

Em primeiro lugar é importante alertar para o fato de que 50% das gestações não são planejadas. Assim, quando a mulher vem a saber que está grávida, já está na quarta ou quinta semana de gestação, o que eleva a possibilidade de exposição fetal ao álcool mesmo nas mulheres que compreendem os riscos da ingestão de álcool na gravidez.

Portanto, é recomendado que as mulheres em idade reprodutiva que ingerem bebidas alcoólicas ocasionalmente ou habitualmente, conversem sempre com o(a) ginecologista sobre o assunto, e peçam orientação sobre métodos anticoncepcionais, no intuito de evitar gestações não planejadas. É fundamental suspender a ingestão de álcool não só quando uma gravidez está confirmada, mas em qualquer suspeita de gravidez.

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Qual a dose mínima de ingestão de álcool segura na gestação?

Até o momento não foi estabelecida nenhuma dose segura para ingestão de álcool durante a gestação, em nenhum período da mesma. Existem casos em que um único drinque levou a SAF. Na dúvida se uma dose pequena pode ou não ser inócua, a recomendação mundial é que mulheres em idade fértil que estejam planejando engravidar, ou aquelas que já estejam grávidas, se abstenham completamente da ingestão de álcool, em qualquer quantidade, em qualquer etapa da gestação.

Há riscos para a própria gestante que ingere álcool?

Sim, o consumo de álcool também traz problemas à própria gravidez, com elevação do risco de abortos, descolamento prematuro de placenta, hipertonia uterina e parto prematuro. Em sua tese de mestrado a Psicóloga Sheila Carla de Souza, orientada pelo Médico Geneticista Decio Brunoni, investigou em um município da Grande São Paulo, 71 gestações de 16 mulheres alcoolistas, e detectou 3 filhos nascidos mortos, 4 abortos espontâneos, e 5 abortos provocados.

Claro que a maioria das mulheres que ingerem álcool na gestação não são alcoolistas, e, portanto, o reconhecimento do perfil de mulheres que fazem uso inadequado do álcool durante a gestação deveria ser utilizado para priorizar ações de educação em saúde voltadas para parcela da população mais vulnerável. Além disso, considerando que o risco de repetição de SAF em futuras gestações da mesma gestante é em torno de 50 a 75%, identificar consumo abusivo de álcool entre mulheres em idade fértil é muito importante como medida de prevenção de novos casos de SAF em futuras gestações.

Como reconhecer SAF após o nascimento?

Na prática médica, identificar com segurança que os problemas de saúde de uma pessoa são consequências da SAF não é uma tarefa fácil, em especial quando as mães não informam que ingeriram bebida alcoólica na gestação ou quando consideram que a ingestão de dose pequena nem precisaria ser mencionada aos médicos.

Quando uma pessoa com SAF apresenta sinais físicos, entre eles retardo de crescimento e peso, microcefalia, fissuras palpebrais estreitas, filtro nasal longo, sulco nasal liso e lábio superior fino, um médico especializado consegue fazer o diagnóstico de SAF, mesmo que não haja uma história clara de ingesta de álcool pela mãe quando gestante. Porém a maior parte dos indivíduos com SAF não apresenta estes sinais físicos, mas sim as consequências a médio e longo prazo sobre o comportamento e a inteligência.

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Os sinais e sintomas da SAF são variados (‘espectro”), desde sinais sutis e inespecíficos, até óbitos fetais e quadros devastadores. Estão dentro do espectro das consequências da SAF muitos indivíduos com déficits intelectuais, com coeficiente de inteligência médio na faixa limítrofe, deficiências em diferentes componentes da função executiva e da atenção, deficiências no processamento de informações e no processamento numérico, deficiências no raciocínio espacial, na memória visual, na linguagem e nas funções motoras. Como se não bastassem tão amplas e severas consequências, recai sobre a mãe, os afetados e seus familiares a espada cruel da estigmatização.

Tendo a SAF ocorrido, é fundamental, ao invés de simplesmente “carimbar” o paciente com o diagnóstico de SAF, iniciar um processo amplo e multidisciplinar de intervenção precoce, no intuito de melhorar a performance cognitiva e comportamental do indivíduo, tentando o melhor ajuste possível dentro da família, na escola, e junto a sociedade.

Quando as anomalias congênitas, incluindo a SAF, serão finalmente consideradas um problema de saúde pública prioritária no brasil?

Há 20 anos, as Anomalias Congênitas passaram a ser a segunda maior causa de mortalidade infantil no Brasil. Desde 2015, as Anomalias Congênitas correspondem à principal causa de morte infantil nos estados das regiões Sul, Centro-Oeste e Sudeste — com exceção de Minas Gerais e Goiás, onde ocupam o segundo lugar. No Norte já é a principal causa de mortalidade infantil em Amazonas e Rondônia, e segunda maior causa nos outros estados. No Nordeste já é a principal causa de mortalidade infantil em Pernambuco e Paraíba, e segunda maior causa nos outros estados.  

Some-se as dificuldades de gestão da Saúde, culturais e diagnósticas, ao fato que dados epidemiológicos sobre a SAF e outras anomalias congênitas no Brasil são pouco confiáveis, e pode-se compreender que devem existir em nosso país muito mais casos de SAF do que se imagina. Um trabalho recente coordenado pela Médica Geneticista e pesquisadora Debora Gusmão Melo, demonstrou mais uma vez que no Brasil os riscos de SAF são alarmantes!

A pesquisadora e seu grupo entrevistaram 818 gestantes no município de São Carlos, localizado no centro geográfico do Estado de São Paulo. Aplicando um questionário para identificar o padrão de consumo alcoólico das mulheres, identificaram 7,3% das gestantes como consumidoras de álcool. No estudo de São Carlos, 107 gestantes convidadas recusaram-se a participar, o que representou uma frequência de não consentimento de 11,6%.

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As recusas foram principalmente atribuídas a cansaço, dores relacionadas ao puerpério e ocupação com atividades maternas, no entanto, é possível que também tenham colaborado para uma menor prevalência de consumo de álcool na amostra investigada. As mulheres temem a falta de sigilo, o estigma do diagnóstico de alcoolista e até mesmo repercussões legais como a perda da guarda dos filhos. A pesquisa identificou que as mulheres mais susceptíveis ao consumo de álcool na gravidez são aquelas sem companheiro fixo.

Outros estudos realizados no Brasil, com diferentes metodologias e em outras localidades, estimam a frequência de consumo de álcool ainda maior, em torno de 10% a 40% das gestantes!!

A SAF é totalmente prevenível e considerada a principal causa de deficiência intelectual e comportamental em humanos!

Como trata-se de uma condição totalmente evitável, e que já é considerada a principal causa de deficiência intelectual e comportamental em humanos, preveni-la, sem sombra de dúvida, seria a estratégia mais eficiente e menos cara, visto que por envolver atendimento médico, psicológico, social e ações legais, o cuidado com os indivíduos com SAF implica em custos muito elevados para o sistema de saúde, para as famílias e para a sociedade em geral.

A mensagem é clara: No que se refere a ingestão de álcool, não existe dose segura, nem momento de gestação seguro, ou tipo de bebida alcoólica segura durante a gravidez ou quando a mulher está tentando ficar grávida ou em idade reprodutiva sem uso de anticoncepção. Simples assim. Na dúvida, em prol do feto!!!

O importante papel das sociedades de especialidades médicas e da mídia na educação em saúde no Brasil

Cientes do grave problema de saúde pública que é a SAF, de que os gestores de Saúde ainda não conseguiram visualizar o tamanho deste problema, e de que ao contrário de outras drogas a ingestão de álcool é lícita no Brasil, várias Sociedades de Especialidades Médicas vem fazendo seu papel na luta contra a SAF, com brilhantismo e união.

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A Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, a Sociedade de Pediatria de São Paulo e a Sociedade Brasileira de Pediatria, uniram forças e lançaram em parceria a segunda edição do livro “Efeitos do Álcool na Gestante, no Feto e no Recém-Nascido”. O objetivo da publicação foi atualizar para os médicos de todo o Brasil as informações mais recentes sobre a SAF.

Para conscientizar a população sobre os riscos da ingestão de álcool durante a gravidez, a Sociedade Brasileira de Pediatria divulgou um mês atrás uma série de vídeos informativos em alusão ao Dia Mundial de Prevenção da Síndrome Alcóolica Fetal, lembrado em 9 de setembro.

A iniciativa faz parte da campanha “Gravidez Sem Álcool”, iniciada pela Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP) e promovida nacionalmente pela Sociedade Brasileira de Pediatria, desde 2017. Fundado em 1990, o SIAT ( Sistema Nacional de Informação sobre Agentes Teratogênicos) é um projeto público do Departamento de Genética e do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Presta atendimento de altíssima qualidade e confiabilidade, gratuito, tanto para a comunidade como para profissionais da área médica. O site gravidez-segura.org é mantido pelo SIAT, e a página sobre SAF pode ser acessada em https://gravidez-segura.org/alcool.php.  

Já a Sociedade Brasileira de Genética Médica e Molecular, alerta e preocupadíssima com a mensagem subliminar errada que a cena da novela pode passar (“os efeitos de um “porre” em uma mulher grávida se encerram quando os efeitos do álcool cessam em quem ingeriu”), imediatamente lançou esta semana uma Nota de esclarecimento à população, em seu site e em suas redes sociais.

Os materiais educativos das Sociedades de Especialidades já foram e serão vistos e lidos por centenas, talvez milhares de pessoas. Porém a novela das 21 horas da Rede Globo é tradicionalmente o programa de maior Ibope na Televisão brasileira. O capítulo no qual a gestante se embriagou foi visto por cerca de 26 milhões de pessoas em 9,3 milhões de lares…   

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Segundo Sol” ainda tem quatro semanas para chegar ao fim. O último capítulo será exibido no dia 9 de novembro, e a Rede Globo ainda tem tempo de usar o seu enorme potencial de alcançar a casa de milhões de futuras gestantes, e passar a mensagem correta. Será que o filho da personagem “Rosa” vai nascer com a Síndrome Alcoólica Fetal, e então milhões de brasileiros passarão a compreender o perigo da ingestão de álcool na gravidez? Ou será que o filho da personagem vai nascer saudável, sinalizando que a ingestão de bebida alcoólica na gestação é inócua? A novela logo acaba, mas no dia seguinte a vida real continua!

Salmo Raskin

 

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